No Vale do Jequitinhonha (MG), uma das regiões mais pobres
do país, o projeto “Ser criança” ensina através de brincadeiras e de muita
música.
Uma estrada sinuosa, estreita, cheia de caminhões. Estamos
a caminho do Vale do Jequitinhonha, nordeste de Minas Gerais, uma das regiões
mais pobres do país. Um Brasil esquecido passa pela janela. Nosso destino é a
cidade de Araçuaí.
O que nos leva a essa terra que brilha é um canto. Um
canto harmonioso e transformador.
A região tem ares e sotaques nordestinos. Afinal, estamos
quase na divisa com a Bahia. Araçuaí tem 30 mil habitantes. O povo é humilde. E
com criatividade encontrou a solução para seu maior problema: a falta de
oportunidades.
Uma casa simples, à sombra de uma mangueira, com janelas e
portas sempre abertas para o aprendizado. Na cozinha se ensina português e
matemática. O salão é o espaço da democracia, das descobertas, da terapia. E no
quarto a música não dorme. Ao contrário, é ela que desperta a transformação.
É na casa pintada com tinta feita de terra que 180 meninos
e meninas de Araçuaí são preparados para uma vida melhor. Aqui funciona o
projeto "Ser criança".
E o que a garotada faz por lá? Aprende, brincando.
Na cozinha, a criançada faz biscoitos. A receita é fácil e
divertida. A professora escreve, as crianças lêem os ingredientes. A receita
também serve para ensinar Matemática.
Contas feitas, eles botam a mão na massa. E com a massa
pronta, é hora de caprichar na caligrafia.
“Quem ainda não conhece letra vai aprendendo aqui. Quem
ainda não consegue, quer tentar com o biscoito”, diz a professora Juliana
Santana.
O encontro das crianças e da música regional na roda soma
cultura, brincadeira e educação.
“Tudo aqui gira em torno da roda, você aprende a
conversar, você aprende a ser uma pessoa melhor, escutar as pessoas, a
respeitar o direito”, diz Cléia Celestino da Silva, coordenadora do coral.
Hoje educadora dessas crianças, Cléia já foi uma delas. É
semente que cresceu no projeto. Até marcenaria aprendeu.
“Fazia mesa, bancos. Meu pai mesmo não gostava não na
época. Depois foi conhecer o projeto. Ele olhou e disse: ‘É, bonito mesmo, você
que faz isso mesmo?”, conta Cléia.
Cléia não sorria tanto assim quando pequena. Quanta
transformação.
“A gente expressa opiniões, os sentimentos, os jogos, a
gente aprende coisas novas, inovadoras que pode multiplicar na escola”, diz
Emily Alves Miranda.
Quando perguntada se sempre foi comunicativa, Emily diz:
“Antes eu era muito tímida. Tinha vergonha de tudo. Hoje eu já falo, expresso
meus sentimentos pra todos, tudo o que sinto”.
O rio Araçuaí, que dá nome à cidade, passa pertinho da
casa de Emily. A menina se descobriu no "Ser criança". Aparecida dos
Santos, a mãe, ficou aliviada.
“Perguntava a ela se ela tinha esperança em alguma coisa,
não tinha assim, sabe? Não sonhava, não sonhava. E com o projeto assim, ah,
despertou nela, entendeu?”, diz aliviada.
Emily já até conta seus sonhos.
“Sonho, em ser atriz de novela”, revela.
A arte também contaminou a pequena Roseane, de 7 anos. Mas
não pense que Roseane sempre deu tanto orgulho assim à mãe e à avó. A menina
era uma espoleta!
“Largava as coisas, chegava dentro de casa espalhava tudo
e não guardava, a gente tinha que estar brigando para ela guardar, pondo de
castigo, chegava da escola jogava as roupas”, diz a mãe Lucinéia dos Santos.
“Hoje ela está uma menina alegre, sorridente e que
conversa com a gente com educação”, revela a avó, Maria José dos Santos.
Uma mudança surpreendente.
“Depois que ela entrou no coral ela chega em casa, tira a
roupa da escola, guarda o uniforme, já recolhe os brinquedos com que brincou.
Ela acaba de comer e lava o prato” conta a mãe.
Rose e Emily não mudaram só de comportamento. Se revelaram
cantoras. E junto com outros meninos e meninas de Araçuaí, estão botando a
cidade no circuito cultural brasileiro.
O coral "Meninos de Araçuaí" existe há 13 anos.
Várias gerações já soltaram a voz - daqui para o mundo.
“Já fui até para a França com Milton Nascimento, cantei
com Gilberto Gil, tive essa oportunidade aqui dentro, por fazer parte do coral
meninos de Araçuaí”, se orgulha Cléia Celestino da Silva, coordenadora do
coral.
“Os meninos de Araçuaí, por viajarem muito, viraram os
embaixadores da cidade. Esses meninos normais colocaram a cidade no mapa, olha
que engraçado”, conta Yuri Hunas Miranda, músico.
O sucesso do coral dos meninos encheu Araçuaí de orgulho e
também deu à cidade um presente, uma conquista que parecia muito distante e que
foi construído com o dinheiro arrecadado em apresentações e com a venda de CDs
do grupo. O cinema “Meninos de Araçuaí” abriu as portas em fevereiro de 2008. A sala é bonita, tem
capacidade para 105 espectadores e é ponto de encontro dos moradores no fim de
semana. Agora, o melhor é que seja qual for o filme em cartaz quando as luzes
se apagam. O sonho continua.
Iuri virou percussionista profissional, Cléia coordenadora
do coral e Pitágoras, professor de música.
“A gente nasceu aqui, essa vontade nasceu aqui e a gente
está podendo passar isso para os meninos”, conta o professor de música.
Já Iuri, o percussionista, completa:
“Hoje em dia falam muito em transformação social, mas por
que a gente precisa de tanta transformação? Porque não foram formados de fato,
não é? Então esses meninos aqui agora que estão tendo formação, que estão
convivendo com grandes artistas, têm boa educação com os coordenadores, eles
estão sendo preparados para a vida. Então, quando tiver, 20 ou 30 anos, não vai
precisar de transformação social, não vai para o mau caminho”, resume.
A lição que se aprende aqui é mostrada em palcos bem
distantes. Quem fica, sente uma falta danada dos pequenos cantores.
“Cada vez que vai eu fico doente, Enquanto não chega eu
não melhoro.” se preocupa Dona Zezé, avó da pequena Emily.
A maioria deles nunca teve a chance de acompanhar as
crianças nas viagens.
“Meu deus do céu, se acontecer na minha vida de eu ir,
para mim vai ser emocionante demais”, se orgulha Aparecida, mãe de Emily.
Nós resolvemos fazer uma surpresa para os meninos de
Araçuaí. O destino é Belo Horizonte. Eles têm apresentação marcada na capital.
Só não sabem que os parentes embarcam no dia seguinte e vão estar na platéia.
A peça "Pra nhá, terra", com direção de Regina
Bertola, reúne no mesmo palco o grupo de teatro “Ponto de partida”, de
Barbacena, e os “Meninos de Araçuaí”. Nos bastidores, muito capricho e
ansiedade.
No palco, concentração, descontração. Aquecimento de voz.
Enquanto isso, lá fora. Depois de 12 horas de viagem,
chegou o grande momento, tão esperado. Os parentes dos meninos de Araçuaí estão
entrando aqui no Palácio das Artes, o mais importante e tradicional teatro do
estado de Minas Gerais. Estão aqui para viver uma emoção única, na verdade uma
emoção dupla porque eles nunca viram essas crianças se apresentando num palco
tão imponente quanto esse aqui. E elas não fazem idéia de que eles estão na
plateia e só vão descobrir essa surpresa no fim do espetáculo.
“O melhor de tudo é isso aí, é a surpresa!”, diz uma mãe.
O espetáculo começa. Nhá Terra exige a proteção da
natureza, destruída aos poucos pela ação do homem. É um deus nos acuda na
floresta, árvores sendo cortadas e incêndios.
Os meninos de Araçuaí são guardiões da natureza. E eles se
transformam no palco. Tornam-se grandes estrelas. Dão um show de coreografia,
de graça, de afinação. E tudo termina bem. Muito bem. O público aplaude de pé,
quanto orgulho...
Mas ainda falta revelar a surpresa:
“Quem for mãe e pai fica em pé. Dos meninos de
Araçuaí! Cadê os meninos de Araçuaí, os pais e as mães?”
Emoção em cascata! É hora de muitos beijos e abraços.
“Vou incentivar minha filha cada vez mais, com a ajuda de
Deus. Agora, para mim todo sonho é possível. Estou feliz demais”, se emociona
Aparecida.