Rei da cachaça cria cabras e cobras e sonha em distribuir
seu dinheiro pelo mundo.
Uísque ou água de coco, cerveja ou Coca-Cola. Bebe-se de
tudo, menos cachaça no bar São Geraldo. A ausência da "marvada" pode
passar despercebida entre os frequentadores, mas chama a atenção dos
forasteiros que se aventuram pelo estabelecimento. Isso porque o bar se
encontra em Salinas (MG), a capital mundial da cachaça, mais precisamente no
bairro São Geraldo, epicentro da noite salinense.
Localizada no Vale do Jequitinhonha, no norte de Minas
Gerais, e com uma população de cerca de 40 mil habitantes, Salinas conta com
mais de 60 marcas artesanais que produzem aproximadamente 5 milhões de litros
da bebida por ano. A cidade abriga anualmente um Festival Mundial da Cachaça e
é sede de um enorme museu da bebida.
A cachaça, contudo, não está em alta entre os moradores.
"O povo aqui é tranquilo, só bebe socialmente." Quem explica é
Antonio Rodrigues, 64, consumidor de nove doses diárias da bebida. "São
três doses pela manhã, três pela tarde e três pela noite", explica "o
maior produtor artesanal de Salinas, do Brasil e do mundo" ou o
"grande rei da cachaça", como diz ser conhecido.
Antonio Rodrigues, o rei da cachaça-Foto: Carlos Cecconello/Folhapress
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Conhecido como Toni, o mineiro é o maior produtor de
cachaça artesanal do Brasil.
O reinado de Toni, como de fato é conhecido, impressiona.
Dono das marcas Seleta, Saliboa e Boazinha, ele começou a trabalhar no ramo aos
27 anos, por influência do sogro, dono de uma fábrica da bebida. A produção
própria só começou em sua fazenda depois de dez anos. O motivo para entrar no
ramo era simples: "Eu sempre gostei de ganhar dinheiro".
Hoje, Toni produz cerca de 1,3 milhão de litros por ano e
exporta para países como EUA e China. Mas o que realmente chama atenção é sua
figura.
Toni recebeu a Serafina vestido de branco da
cabeça (chapéu) aos pés (sapatos). "Quando estou de branco, a alma fica
limpa e o espírito aberto", diz. "Por isso, gosto de usar branco às
segundas, quartas e sextas-feiras, começo, meio e fim da semana", explica
o cachaceiro, que encontrou a reportagem em uma terça-feira.
Sua marca registrada é uma longa barba branca, que acaba
de completar 15 anos de idade. A grande e grisalha cabeleira, que a acompanha
invariavelmente, escorre por debaixo de algum dos chapéus que compõem sua vasta
coleção. Toni tem três guarda-roupas e três sapateiras. "Uso uma roupa por
no máximo três horas e tomo de seis a oito banhos por dia", diz.
Por baixo do chapéu Marcatto, de R$ 77 --ele não tira as
etiquetas das roupas--, Toni leva um galho de arruda atrás da orelha. Orgulhoso
proprietário de 500 pés
da planta, garante que não usa a erva para espantar o mau-olhado. "Eu
finjo ser supersticioso", conta. "Faço isso para chamar a
atenção." Mas não gosta de maldizer a sorte. "É melhor ter sorte que
ser filho de pai rico", diz. "E eu tenho."
Toni não gosta de dirigir --conseguiu atolar o carro e
estourar um encanamento subterrâneo em sua fazenda nos poucos minutos em que
levou a reportagem para um passeio. Seu meio de locomoção favorito é a mula.
Sempre que pode, ele lança a sela em uma de suas 36, de preferência na que é
seu xodó, Pirraça. Mas tem algumas de nomes mais sugestivos, como Sua Mãe e Seu
Cuzinho.
Fascinado por animais, ele diz ter adestrado pessoalmente
todas as mulas e os 84 cachorros que moram em suas duas fazendas.
Em sua casa na cidade, conta com a companhia de uma
simpática cabra, de nome Arapuca, e o visitante ainda pode tomar um susto com
Catarina, uma jiboia de seis metros que rasteja placidamente pelos aposentos. A
cabra e a cobra, garante Toni, são amigas.
FAVOR NÃO BATER NO PORTÃO
Surpreendentemente simples para o dono de uma empresa que
fatura "bem mais de 10 milhões por ano" (a política da companhia é
não divulgar números), a casa de Toni não recebe estranhos de portas abertas.
Em cima de um muro amarelo, uma coleção de carrancas
sugere uma recepção pouco calorosa. Na porta, um aviso afixado passa o recado
mais diretamente: "Patrocínio já era, doações também. Favor não bater no
portão".
Dentro do imóvel, fotos ampliadas dos seus seis filhos e
cinco netos dividem as paredes com frases de autoajuda e piadas, impressas em
folhas de papel sulfite e coladas com fita adesiva.
"Pai alho, mãe cebola, o filho não tem como cheirar
bem", prega uma. "Cachaça só faz duas coisas com seu coração partido:
ou arregaça estraçalhando tudo de vez, ou remenda", diz outra, para
deleite do mineiro banguela, que ri alto, exibindo um buraco recente (fruto de
um acidente gastronômico que lhe vitimou um pivô) e 25 dentes de ouro.
"Tenho uma boca rica", brinca.
E, se depender dele, ela tem tudo para ficar mais rica
ainda. "Não ganhei dinheiro o suficiente", resmunga o cachaceiro.
"Mas estou mexendo com um segundo negócio muito promissor, que é uma lavra
de pedras preciosas, de turmalina rosa", conta.
"Dentro de cinco anos, vou ganhar R$ 500
bilhões", prospecta, muito otimista (o quilate da pedra, em sua variedade
mais valiosa, vale R$ 617. Para efeito de comparação, o preço do quilate de
esmeralda mais valioso é 20 vezes maior).
E mantém a humildade para ajudar o repórter. "São 16
números, se você precisar escrever depois." Embora prestativo, o mineiro
embaralha as contas, talvez inebriado pelo efeito da cachaça com Gatorade que
beberica ao longo da entrevista. Quinhentos bilhões se escrevem com 12 números
(14, se contar os dois zeros depois da vírgula).
Esse detalhe não incomoda o empreendedor, que possui
questões mais prementes a tratar. Toni tem planos para sua empresa até 2048,
ano em que completará seu centenário. Até lá, pretende formar um sucessor.
"Quem sabe algum neto ou bisneto."
Gastar toda a bolada que sonha ganhar com a turmalina rosa
não será problema. "Vou ficar só com 1% e doarei 99%, o que dá R$ 495
bilhões, para 13.500 pessoas que eu escolherei", diz. É bom correr. Você
só tem mais 36 anos para cair nas graças de Toni Rodrigues.
Por RAFAEL ANDERY, DE SALINAS (MG), 29.09.13, na
Folha de S. Paulo
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