Por quem dobram os sinos de Minas? Pela tradição, pela
história – e pela comunicação. Em muitas cidades coloniais, esses instrumentos
de bronze continuam como agentes de informação, chamando para festas,
convocando fiéis para missas e com o poder até de alertar para calamidades.
Também Uberaba emite bons sons, e uma empresa de fundição
exportou para o Vaticano. E como fazer essa história se tornar cada vez
mais viva? A professora aposentada de Mariana Hebe Rôla, autora de um livro
infantil sobre o tema, visita escolas e conta à criançada sobre a importância
de se preservar a linguagem dos sinos.
Já para quem acha que se trata de um objeto sem serventia,
obsoleto, vale o alerta: os ladrões estão de olho neles. No ano passado, um
sino, pesando 120kg, foi arrancado da centenária Capela de Santo Antônio do
Monte, no distrito de Engenheiro Nogueira, em Ouro Preto. A
polícia e o Ministério Público estadual (MPE) investigam o sumiço. Portanto,
enquanto os sinos dobram nas igrejas, as autoridades devem “redobrar” os
cuidados para mantê-los aos olhos e ouvidos da população. Em perfeito estado.
São João Del-Rei – Uma escada de pedra com 77 degraus e
outra de ferro, com onze, conduzem à torre da Catedral de Nossa Senhora do
Pilar e a uma das mais belas e antigas tradições de Minas. Nesse ponto de onde
se avistam outras igrejas e parte de São João Del-Rei, no Campo das Vertentes,
reluzem os sinos que chamam os católicos para missas e procissões, dão notícias
a todos sobre mortes e enterros e podem até informar sobre chuvas e incêndios.
Enfim, um sistema de comunicação velho como o tempo e em plena atividade
nesse mundo tão tecnológico.
O acesso estreito e em curvas que conduz ao campanário da
catedral não assusta os jovens Vinícius Adriano Faria Silva e Lucas Henrique
dos Santos Bispo, ambos de 16 anos, acostumados, desde a infância, a passar
sebo nas canelas e atingir a corda e o instrumento em questão de segundos. Com
experiência e destreza, a dupla põe os sinos em movimento – desta vez, na noite
de segunda-feira, para convocar os integrantes da Irmandade das Almas para a
missa.
Piercing brilhante no nariz, cabelo discretamente cortado
à la Neymar e
quase sempre com a camisa do Flamengo, time do coração, Vinícius faz parte de
uma família de sacristãos e sineiros que demonstram completa intimidade com os
templos barrocos de São João Del-Rei, chamada, muito apropriadamente, de cidade
dos sinos, por manter a tradição dos dobros, repiques e badaladas, sem
interferências, desde o período colonial. “Não é preciso força, mas jeito”,
explica o adolescente sobre o ofício que aprendeu aos quatro anos com o tio
Rodrigo. “Meu pai Fábio, sineiro da catedral, não gostava que eu subisse na
torre, pois tinha medo que eu caísse de lá. Agora, são as meninas que ficam
preocupadas…”, brinca o jovem sobre o charme e mistério que a atividade
desperta. Hoje, a cidade assiste, no Largo do Rosário, às 19h30, à Sinfonia dos
sinos, um espetáculo com orquestra de músicos locais, com repeteco em 23 de
junho e 4 de agosto. O nome do concerto é para homenagear São João del-Rei.
Quem vê os jovens movimentando os sinos pode até pensar
que são dois malabaristas, pois, às vezes, para fazer o sino dobrar, chegam a
ficar encurvados, com os pés na parede. Aos olhos de quem acompanha a cena, dá
um certo medo de que eles se projetem no espaço, mas é tudo ilusão de ótica –
são cobras criadas. “Perigoso mesmo é o sino voltar e bater na nossa cabeça. No
início, isso ocorria, agora não. A torre libera o estresse, dá muita
adrenalina”, diz o rapaz. Já no campanário da Igreja de Nossa Senhora do
Rosário, o tio Rodrigo Leandro da Silva, de 41, demonstra total satisfação em
ser um “sineiro com carteira assinada”, atividade iniciada aos 21.
Senhora é morta! Na família Silva, de seis filhos, só um
fugiu à regra e não trilhou os caminhos das torre das igrejas, mas alguns
sobrinhos seguem os passos. No campanário do Rosário, enquanto “comunica” a
chegada do enterro de uma mulher da irmandade, Rodrigo conta sobre a mecânica
com a qual lida diariamente. “Os sinos pequenos fazem a marcação dos repiques,
o médio faz a pergunta e o grande responde. Os três fazem um diálogo entre si.”
A convite do Estado de Minas, numa noite fria e chuvosa, parte da família Silva
se reuniu na torre da catedral para uma pequena demonstração dessa arte
milenar.
Giovanni Tirado Santos Silva, de 29, o Vaninho, auxiliar
de escritório, é também sacristão da Capela de Santo Antônio e traz o gosto
herdado do pai, José Giovani, e dos tios. “Sinto muito orgulho.” Ao lado, José
Giovani, sacristão da Igreja das Mercês, lembra que “sino não tem nota musical”
e que para ser um bom sineiro é preciso, basicamente, ritmo e ouvido. Os irmãos
destacam que todo sino deve ser batizado e abençoado antes do uso, ganhando,
assim, um nome.
Os irmãos Rodrigo, Alessandro, José Giovani, Fábio e Luiz
Eduardo, que já foi sineiro, são bem afinados na missão. Alessandro William da
Silva, de 37, sacristão da catedral, afirma que técnica é outro componente
fundamental. Ele considera o toque mais bonito o da Festa da Boa Morte –
Trânsito e Assunção de Nossa Senhora, em 14 de agosto. No último dia de novena,
véspera da festa, os sinos repicam, de hora em hora, “Senhora é morta!”,
somente na torre esquerda da catedral, em quatro sinos. O repique é realizado
até o Glória da Missa da Assunção de Nossa Senhora, no dia 15. Será o mundo dos
sineiros masculino? A resposta bate na tecla da “força”, mas uma lenda antiga
ainda fala grosso. Dizem os antigos que se o cabelo da mulher batesse no sino
ele trincava.
Ao ouvir os sons vindos da torre, os visitantes se
encantam. O casal de arquitetos Rinaldo Reis e Suzana Mota, de São Paulo (SP),
falou a Laura, de 11, e Vitória, de 5, sobre a importância desse tesouro de Minas,
já reconhecido como Patrimônio Imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (Iphan). “Eles estão para o século 18 e 19 como o telefone
celular está para o nosso tempo”, comparou Suzana.
Dias de matraca. Em São João del-Rei, há 27 modalidades diferentes de
toques, incluindo avisos de missas, chamada de irmãos, Natal e outros. A cidade
resguardou o toque canônico, determinado pelo sínodo ocorrido na Bahia, em 1720
– ano das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia –, mas também
incorporou, com o tempo, alguns motivos leigos, que partiram dos escravos. “Os
sinos só se calam no período de quinta-feira santa após a missa das 18h até o
glória da vigília pascal no sábado à tarde. Nesses dias, só matraca”, explica o
secretário da Confraria de Nossa Senhora da Boa Morte, músico e estudioso do
tema, Aluízio José Viegas, de 72 anos. “E em alguns dias, como a festa da
padroeira, em 12 de outubro, domingo de Ramos, Natal e Ascensão, não se toca o
dobre fúnebre.”
São João del-Rei, entre as cidades brasileiras e coloniais
mineiras, foi a que mais conservou antigas tradições, e Viegas cita como
principais as solenidades religiosas, litúrgicas e paralitúrgicas, música sacra
em sua prática de coro e orquestra e toques de sinos, em suas múltiplas
modalidades rítmicas. Ele lembra que no passado quase todas as cidades do país
tinham no toque dos sinos o seu meio de comunicado mais usado. “As igrejas e
capelas podiam prescindir de alfaias ricas e prataria, mas nunca dos sinos,
mesmo que pequeno e apenas um. Eram o elo do clero com os fieis leigos e suas
vozes de bronze congregavam, com facilidade, toda a comunidade”, afirma.
Peças - Em Minas, segundo as autoridades eclesiásticas e do patrimônio, não se sabe o número exato de sinos: seria como contar as estrelas do céu, tal a infinidade de campanários, ermidas de fazendas, capelinhas de povoados e outros monumentos. Mas é possível saber como se dá o nascimento das peças de bronze. Na sua oficina, no Bairro Colônia do Marçal, José Edivaldo Ribeiro da Silva, de 57 anos, pai de cinco filhos, recria, na prática, a beleza da forma, a qualidade do som e a magia que envolve o repicar dos sinos. E tem prazer em trabalhar num esquema totalmente artesanal. Funde, no cadinho, as ligas de cobre e estanho, para obter o bronze, molda a peça numa caixa enterrada no chão, retira as rebarbas e faz os arremates com a suas ferramentas. O filho Cleiton, de 35, já é craque no assunto e auxilia o pai no cotidiano.
Natural do Tocantins, Edivaldo chegou a Minas aos seis anos,
passando a residir em São
João del-Rei em 1974. Técnico em metalúrgica, começou a
fabricar sinos como quem encara um desafio, e hoje faz peças que pesam de 1kg a
600kg. O sineiro conta que aprendeu a trabalhar admirando as torres das igrejas
antigas. “Compreendi que um som puro é determinado pela liga e pela espessura
do sino. Os existentes em São
João del-Rei são mesmo diferentes, devido ao material usado
nos séculos 18 e 19. Para o som ficar mais agudo, é preciso elevar a quantidade
de estanho; e para torná-lo grave, deve-se baixá-lo”, ensina.
A construção do sino é processo longo e demorado, está bem
próxima de uma “gestação”. Na primeira etapa, Edivaldo faz a liga de cobre e
estanho, para formar o bronze. Num cadinho, derrete o cobre e depois adiciona o
estanho também derretido e espera uma semana para que o resultado fique
perfeito. Na etapa seguinte, é preciso colocar o molde (de alumínio) dentro de
uma caixa, que fica enterrada. A partir da chamada liga-mãe, feita na fase
anterior, Edivado faz nova fundição, juntando níquel. Chega a hora de fazer o
“vazamento”, despejando o bronze para dar forma ao sino.
Depois de alguns dias enterrado, o sino se encontra em
estado bruto, pronto para ser lapidado e receber o acabamento. Com cuidado,
Edivaldo leva a peça para a oficina. Nesse local, ele passa a lixadeira para
tirar os excessos e dar polimento.
Os tempos modernos não aposentaram os instrumentos de
bronze. Na terra do zebu, Uberaba, a 472 quilômetros de
Belo Horizonte, a Fundição Artística de Sinos (Fasu) da cidade tem 30 anos de
experiência e trabalha sob encomenda, tendo como maiores fregueses padres,
donos de fazendas, prefeituras e outros. O encantamento pelas peças vem da fé e
do gosto pela arte, diz José William da Silva, filho do proprietário, José
Donizetti da Silva, que iniciou as atividades em São Paulo. A empresa
tem um tipo de sino com música, que, conforme José William, não tem a ver com
equipamentos eletrônicos. “O som sai do próprio sino, por um sistema em que o
martelo é acionado de forma eletromecânica”.
Sensibilidade – Um friozinho gostoso já domina as manhãs
da primeira vila, cidade e diocese de Minas. No outono de céu azul, a luz solar
realça ainda mais as belas construções coloniais de Mariana, entre elas a
Câmara, as igrejas de São Francisco e Nossa Senhora do Carmo e a Catedral da
Sé, no Centro Histórico. Perto dali, na Rua Dom Silvério, conhecida como “dos
Artistas”, fica o casarão onde mora a professora emérita da Universidade
Federal de Ouro Preto (Ufop) Hebe Rôla. Na quarta-feira, com seu charme
habitual – chapéu combinando com a bolsa e o casaco beges –, ela saiu cedo para
fazer o que mais gosta: falar aos estudantes. Dessa vez, o assunto era um dos
preferidos: a linguagem dos sinos, que estuda desde a década de 1980 e ao qual
dedicou um livro para a criançada: Bem-te-sino.
A obra fala de um bem-te-vi que queria ser um sino de
Mariana, cidade que também conserva esse velho sistema de comunicação entre a
Igreja e a população. E, para encantar ainda mais os estudantes, a professora carrega,
para as suas palestras, todos os personagens do livro – em forma de brinquedos.
Na Escola Estadual Dom Benevides (de tempo integral), as turmas do 1º ao 5º ano
ficam de olhos grudados e ouvidos atentos para não perder uma explicação sequer
da professora. Para começar, ela convocou, especialmente, os integrantes da
centenária Sociedade Musical União XV de Novembro, que tocam um trecho de Os
sinos de minha terra, do compositor marianense Aníbal Walter.
Bronze - Na antiga Vila Rica, uma curiosidade chama
logo a atenção de quem sobe à torre da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar,
no Centro Histórico. Os sinos do século 19 trazem inscrições em latim, gravadas
na bacia, apontando a sua função –“É uma particularidade”, diz o diretor do
Museu de Arte Sacra, Carlos José Aparecido de Oliveira, o Caju. Na torre, ele
mostra o sino da Irmandade de Santo Antônio, onde se lê: Fugo flumina. Festa
decoro. Laudo Deum verum. Defunetus ploro. Congrego clerum. Populum voco, que
se traduz por “Anuncio incêndios, espanto tempestade e intempéries. Alegro e
decoro as festas. Louvo o Deus verdadeiro. Choro os que morrem e falecidos.
Congrego e reúno o clero. Chamo e convoco o povo para as preces”.
Caju conta que os três sinos do campanário do Pilar estão
rachados, “tocando ainda por teimosia”. Na igreja de Nossa Senhora do Carmo,
perto da Praça Tiradentes, no Centro Histórico, está o maior sino de Minas, e
que, como todos os demais, tem nome de batismo: Elias, diz o sacristão Jovelino
Teodoro da Silva, de 70, que já tocou muitas vezes esse monumento de Ouro
Preto. Elias pesa 1,5 tonelada. A palavra sino vem de “signo” que quer dizer
sinal. Ao longo dos tempos, representa uma comunicação do homem com Deus”,
explica o pesquisador cultural Chiquinho de Assis, autor da dissertação de
mestrado Postes, pernas e panelas – Relato etnográfico da prática sineira em Ouro Preto , defendida
na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Chiquinho de Assis conta que a linguagem dos sinos está
presente também em cidades como Congonhas, Catas Altas, Serro e Diamantina.
Nessa última, revela, há uma característica: “Os sinos não se movimentam,
permanecem o tempo todo parados, mesmo durante os dobres”.
Por Gustavo
Werneck, do Estado de Minas
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