terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Um rio, uma cidade e um povo: Coronel na Luta contra os Impactos Ambientais no Rio Jequitinhonha


Por Eric Renan Ramalho

O RIO DAS MINHAS MANHAS
As mulheres tingidas da cor morena…
Ungidas de sal e de sol do suor
Desfilam por estreitos caminhos
Levando raminhos e cheiro de flor.
Umas carregam latas, talhas…
Vasilhas vazias ou cheias de dor.
Outras: bacias, tachos, troixas de roupas batidas.
E surradas na lida do seu amo e amor.
E assim o meu rio as recebe
E oferece água de alvejar
E lajedo quarador.
As cantigas ressoam fugazes.
Ao debulhar dos panos
Costuram-se prosas, rezas, risos e dor.
Joaquim Celso Freire*

A última “cheia” do rio Jequitinhonha trouxe uma boa nova para os moradores da cidade de Coronel Murta: a praia que havia sido levada bela hidrelétrica está de volta! Aproveitando esse ensejo, e dada a importância que a gestão rio Jequitinhonha assume para a manutenção da vida no município de Coronel Murta, essa postagem visa apresentar o quadro local da situação, destacando o ambíguo sentimento de euforia e apreensão que a comunidade local vivência em função do reaparecimento da praia no rio Jequitinhonha em consequência da enchente deste último verão.

Imagem do Rio Jequitinhonha, com o 
Morro do Frade ao Fundo (Foto: Thiago Alves)


Situada às margens do Rio Jequitinhonha, Coronel Murta é cercada por uma extensa cadeia de serras altaneiras que, além de proporcionar belas paisagens, favorecem prática de esportes radicais. Além das Serras, a praia do rio Jequitinhonha atrai inúmeros banhistas de toda a região. Não são raras as vezes que moradores de cidades circunvizinhas visitam o município a fim de desfrutarem deste rico e belo patrimônio ambiental e fonte de lazer do qual a cidade dispõe. Essa praia também poderia ser aproveitada na prática de esportes radicais, como canoagem. Infelizmente a instabilidade na vazão do rio, decorrente da construção da Usina Hidrelétrica de Irapé, dificulta a prática de esportes coletivos, como Futebol, Vôlei e similares. Segundo matéria do Jornal Gazeta de Araçuaí, replicada nesse blog, essa riqueza natural propiciou a transformação da cidade em um importante pólo para o Eco-Turismo.

Além de atrativo turístico, as águas dos Jequitinhonha são de importância basilar para a manutenção do município, pois a cidade se serve do rio como única fonte de abastecimento, e em diversas comunidades rurais o rio cumpre o importante papel de determinação natural da produção e reprodução da vida, conforme demonstra Laschefski e Zouri em comentário sobre comunidades ribeirinhas atingidas pela construção da Usina Hidrelétrica IRAPÉ.

 As comunidades ribeirinhas se apropriam da natureza através de relações sociais baseadas no modo de produção artesanal, agricultura familiar, nos vínculos de parentesco e pertencimento ao território e nos valores fundados nessa interação com o meio ambiente. Elas entendem que a noção predominante de desenvolvimento não está associada ao seu intercâmbio com o Jequitinhonha; prezam pelos vínculos sociais e afetivos, produzindo os seus recursos ao longo de uma história de relações com a natureza. Segundo Laschefski e Zouri, o fato de as comunidades ribeirinhas não concordarem com o modelo de desenvolvimento imposto pelo grande capital não significa que elas não tenham sua própria noção. Em vez disse a rejeição

 aos projetos desenvolvimentistas não significa o desejo de estagnação ou de permanência em uma espécie de passado contínuo. Ao contrário, querem participar e produzir o desenvolvimento da região, mas com base nas condições locais, moldando o seu próprio destino [3].

Entretanto, ao julgo dos interesses de desenvolvimento vigente nos grandes centros esse modelo popular é bucólico, “romântico”, idealista e ineficiente. Pois não articula os mesmos empreendimentos econômicos empregados nas capitais. Para essa visão de mundo a agricultura familiar deveria ser substituída pela monocultura e a produção artesanal pela indústria pesada e de alta tecnologia.

Seguindo essa noção de desenvolvimento alguns investimentos foram empregados no Vale do Jequitinhonha.  Durante o período militar, época do chamado ‘milagre econômico brasileiro’, o governo investiu na monocultura de eucalipto substituindo o cerrado, sob alegações de que esse tipo de vegetação não era economicamente rentável. Nesse mesmo período se intensificou a mineração no Brasil. No vale do Jequitinhonha era vivenciado o rescaldo da extração de ouro e Diamante por via da mineração predatória que, como se sabe, revirava a areia do rio em busca de riquezas.Para a região ficou apenas os impactos ambientais como marcas fulcrais de um padrão de desenvolvimento que prescindiu da organicidade da vida que nela se desenvolveu.

Na década de oitenta o Jequitinhonha agonizava, vítima do assoreamento progressivo ao longo de toda a sua extensão em decorrência da ação humana. Ainda ativas no alto curso do rio, além de provocarem o assoreamento, as dragas também poluíam as águas com mercúrio, um metal pesado e altamente tóxico utilizado no processo de extração do ouro (veja no Blog do Banu, matéria sobre o uso de mercúrio na garimpagem do ouro[4]).

Palco do Festival Ecológico Realizado em 1987. No centro da Foto, Saulo Murta (Saulinho) um dos organizadores do Evento

Em Coronel Murta os impactos foram sentidos e em resposta o município organizou o FESTIVAL ECOLÓGICO, que aconteceu às margens do rio Jequitinhonha em 1985, 86 e 87. Ao lado de outros eventos culturais do Vale, esse FESTIVAL foi citado durante um debate realizado no 29º FESTIVALE como um dos importantes espaços para se pensar a realidade da região, que infelizmente por falta de interesse político e/ou subserviência às “culturas da moda” foram impedidos de continuar a ser realizados ou perderam a envolvimento com as questões sociais [5].

Agora que as dragas já não existem mais, e passados os piores anos dos impactos decorrentes da mineração, nenhuma política ambiental na tentativa de revitalizar o Jequitinhonha foi realizada. Não bastasse isso, novamente interesses do grande capital se interpõem entre o curso natural do rio, interferindo nas relações socioculturais historicamente estabelecidas nesses quatro séculos de povoamento da região.

Em 1997 foi concedida licença prévia para a construção da Usina Hidrelétrica IRAPÉ (UHE-IRAPÉ), inaugurada em 2006 pela CEMIG [6]. Concebida como uma promessa de desenvolvimento para a região, esse empreendimento revelou-se um verdadeiro engodo – aliás, trata-se apenas de mais uma das muitas promessas vãs que o Vale do Jequitinhonha ouviu da boca dos políticos.

Com potencial para gerar 360 Megawatts de energia, até o presente momento a UHE Irapé em nada beneficiou as comunidades atingidas por ela. A energia produzida no vale é utilizada no abastecimento de grandes indústrias instaladas nos grandes centros. Além disso, várias comunidades ribeirinhas, cuja subsistência está associada ao ciclo de enchentes do rio, sofreram impactos em sua economia, conforme denuncia o Documentário “Os Atingidos de Irapé” (clique no link para ver o Trailer [7]).

Em coronel Murta, novamente foram sentidos os impactos das alterações ambientais no rio Jequitinhonha, uma vez que suas relações sociais nutrem um intimo elo com o ele. Algumas comunidades rurais dependem de suas águas para a agricultura familiar, o garimpo artesanal, a irrigação do plantio nas vazantes e das hortaliças nos quintais de casa. Na cidade, por sua vez, o Jequitinhonha é fonte de lazer, além do já mencionado abastecimento da cidade com água potável.

Depois da construção da UHE a vazão do rio aumentou consideravelmente e a praia, tida como potencial atrativo turístico e principal fonte natural de lazer da cidade desapareceu paulatinamente, prejudicando o município econômica e socialmente. As poucas porções de areia que restaram logo foram tomadas pela vegetação, tornando-se impróprias para o lazer. Obviamente, há que se considerar que o aumento da vazão constituiu um ganho para o rio, pois suas águas ganharam novo fôlego e o Jequitinhonha novo alento. Entretanto, se a preocupação girasse em torno da perenidade do rio Jequitinhonha deveriam ser empregados recursos na revitalização de seus afluentes, a preservação de nascentes de córregos e ribeirões. Como se sabe nada disso foi empreendido, indicando claramente que os interesses e os beneficiados são outros e de outras regiões.

A despeito de todos os impactos decorrentes da expropriação dos recursos naturais, as últimas chuvas trouxeram grande volume de água ao rio e com elas a antiga praia de Coronel Murta está de volta. O rio devolveu aquilo que os interesses estrangeiros levaram. Em todos os cantos da antiga Itaporé [7] pode ser sentida a euforia com a possibilidade de, depois de alguns anos, novamente acontecer um Carnaval com praia. Se isso de fato ocorrer, a cidade receberá muitos turistas que fomentaram a economia local, e a população terá ampliados os seus momentos de lazer. Porém, convive com essa euforia o medo de as expectativas serem frustradas, pois a vazão do rio se altera de acordo com as necessidades da UHE e a qualquer momento o rio pode subir, alagando a praia novamente e, talvez, levando-a definitvamente.

População de Coronel Murta protesta: CEMIG/IRAPÉ não acabem novamente com a praia em ITaporé

Ao longo deste artigo tentei demonstrar, ainda que de forma implícita, que o rio Jequitinhonha não é apenas um patrimônio ou um bem imaterial, mas uma categoria social profundamente enraizada na produção da vida e reprodução social no vale do Jequitinhonha. Inseridas neste gradiente teórico-prático as relações sociais estabelecidas entre a população de coronel Murta e o rio Jequitinhonha, bem como os impactos ambientais, carecem de ser amplamente discutidas a fim de vislumbrar políticas de preservação, bem como, conferir poderes de gestão de suas águas ao povo que delas depende.

Assim sendo, gostaria de chamar atenção da população local e circunvizinha para a necessidade de começarmos um amplo e profundo debate sobre a importância do Rio Jequitinhonha, e do meio ambiente como um todo, para a reprodução social do vale. Em coronel murta, apesar da euforia, até agora não se vê tentativas de mobilizar a população nesse sentido.  Apenas uma tímida tentativa de encampar um protesto via Facebook é o que vi de mais relevante em termos de discussão. Ainda no Facebook um grupo de discussões viceja a possibilidade de realizar um quarto Festival Ecológico, a fim de reviver aqueles da década de oitenta, porém, ainda sem colocar em pauta as questões ambientais e sociais. Ora, não seria esse o momento certo para as instituições competentes, prefeitura, vereadores, igrejas, católica e protestantes, e a sociedade civil se mobilizarem no esforço de insuflar ânimo a essas causas?

*Eric Renan Ramalho é natural de Coronel Murta, graduando em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais, Coordenador da Associação de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha (ADVJ), Colaborador do movimento “A UFVJM É NOSSA!” e Administrador do Blog Onhas.

** O Poema o ‘Rio das minhas Manhãs’ foi gentilmente cedido pelo seu autor, o escritor natural de Coronel Murta, Joaquim Celso Freire, e será publicado em uma antologia prevista para maio de 2012.

Veja a matéria completa CLICANDO AQUI

Sobre o Autor: Bernardo Vieira
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    Bernardo Vieira

    Sou mais um apaixonado pelo Vale do Jequitinhonha e suas riquezas. Venho, através deste blog, tentar expandir a cultura do vale, bem como trazer novidades e coisas úteis em geral. Formado em Administração pela UFLA - Universidade Federal de Lavras e Funcionário Público Estadual (TJMG). contato pelo email: nabeminasnovas@yahoo.com.br ou bernardominasnovas@hotmail.com.

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