Por Eric
Renan Ramalho
O RIO DAS MINHAS MANHAS
As mulheres tingidas da cor morena…
Ungidas de sal e de sol do suor
Desfilam por estreitos caminhos
Levando raminhos e cheiro de flor.
Ungidas de sal e de sol do suor
Desfilam por estreitos caminhos
Levando raminhos e cheiro de flor.
Umas carregam latas, talhas…
Vasilhas vazias ou cheias de dor.
Outras: bacias, tachos, troixas de roupas batidas.
E surradas na lida do seu amo e amor.
Vasilhas vazias ou cheias de dor.
Outras: bacias, tachos, troixas de roupas batidas.
E surradas na lida do seu amo e amor.
E assim o meu rio as recebe
E oferece água de alvejar
E lajedo quarador.
E oferece água de alvejar
E lajedo quarador.
As cantigas ressoam fugazes.
Ao debulhar dos panos
Costuram-se prosas, rezas, risos e dor.
Ao debulhar dos panos
Costuram-se prosas, rezas, risos e dor.
Joaquim Celso Freire*
A última “cheia” do
rio Jequitinhonha trouxe uma boa nova para os moradores da cidade de Coronel
Murta: a praia que havia sido levada bela hidrelétrica está de volta!
Aproveitando esse ensejo, e dada a importância que a gestão rio Jequitinhonha
assume para a manutenção da vida no município de Coronel Murta, essa postagem
visa apresentar o quadro local da situação, destacando o ambíguo sentimento de
euforia e apreensão que a comunidade local vivência em função do reaparecimento
da praia no rio Jequitinhonha em consequência da enchente deste último verão.
Situada
às margens do Rio Jequitinhonha, Coronel Murta é cercada por uma extensa cadeia
de serras altaneiras que, além de proporcionar belas paisagens, favorecem
prática de esportes radicais. Além das Serras, a praia do rio Jequitinhonha
atrai inúmeros banhistas de toda a região. Não são raras as vezes que moradores
de cidades circunvizinhas visitam o município a fim de desfrutarem deste rico e
belo patrimônio ambiental e fonte de lazer do qual a cidade dispõe. Essa praia
também poderia ser aproveitada na prática de esportes radicais, como canoagem.
Infelizmente a instabilidade na vazão do rio, decorrente da construção da Usina
Hidrelétrica de Irapé, dificulta a prática de esportes coletivos, como Futebol,
Vôlei e similares. Segundo matéria
do Jornal Gazeta de Araçuaí, replicada nesse blog, essa riqueza
natural propiciou a transformação da cidade em um importante pólo para o
Eco-Turismo.
Além de atrativo
turístico, as águas dos Jequitinhonha são de importância basilar para a
manutenção do município, pois a cidade se serve do rio como única fonte de
abastecimento, e em diversas comunidades rurais o rio cumpre o importante papel
de determinação natural da produção e reprodução da vida, conforme demonstra
Laschefski e Zouri em comentário sobre comunidades ribeirinhas atingidas pela
construção da Usina Hidrelétrica IRAPÉ.
As comunidades
ribeirinhas se apropriam da natureza através de relações sociais baseadas no
modo de produção artesanal, agricultura familiar, nos vínculos de parentesco e
pertencimento ao território e nos valores fundados nessa interação com o meio
ambiente. Elas entendem que a noção predominante de desenvolvimento não está
associada ao seu intercâmbio com o Jequitinhonha; prezam pelos vínculos sociais
e afetivos, produzindo os seus recursos ao longo de uma história de relações
com a natureza. Segundo Laschefski e Zouri, o fato de as comunidades
ribeirinhas não concordarem com o modelo de desenvolvimento imposto pelo grande
capital não significa que elas não tenham sua própria noção. Em vez disse a
rejeição
aos projetos desenvolvimentistas não significa o desejo de
estagnação ou de permanência em uma espécie de passado contínuo. Ao contrário,
querem participar e produzir o desenvolvimento da região, mas com base nas
condições locais, moldando o seu próprio destino [3].
Entretanto, ao julgo
dos interesses de desenvolvimento vigente nos grandes centros esse modelo
popular é bucólico, “romântico”, idealista e ineficiente. Pois não articula os
mesmos empreendimentos econômicos empregados nas capitais. Para essa visão de
mundo a agricultura familiar deveria ser substituída pela monocultura e a
produção artesanal pela indústria pesada e de alta tecnologia.
Seguindo essa noção
de desenvolvimento alguns investimentos foram empregados no Vale do
Jequitinhonha. Durante o período militar, época do chamado ‘milagre
econômico brasileiro’, o governo investiu na monocultura de eucalipto
substituindo o cerrado, sob alegações de que esse tipo de vegetação não era
economicamente rentável. Nesse mesmo período se intensificou a mineração no
Brasil. No vale do Jequitinhonha era vivenciado o rescaldo da extração de ouro
e Diamante por via da mineração predatória que, como se sabe, revirava a areia
do rio em busca de riquezas.Para a região ficou apenas os impactos ambientais
como marcas fulcrais de um padrão de desenvolvimento que prescindiu da
organicidade da vida que nela se desenvolveu.
Na
década de oitenta o Jequitinhonha agonizava, vítima do assoreamento progressivo
ao longo de toda a sua extensão em decorrência da ação humana. Ainda ativas no
alto curso do rio, além de provocarem o assoreamento, as dragas também poluíam
as águas com mercúrio, um metal pesado e altamente tóxico utilizado no processo
de extração do ouro (veja no Blog do
Banu, matéria sobre o uso de mercúrio na garimpagem do ouro[4]).
Palco do Festival
Ecológico Realizado em 1987. No centro da Foto, Saulo Murta (Saulinho) um dos
organizadores do Evento
Agora que as dragas
já não existem mais, e passados os piores anos dos impactos decorrentes da
mineração, nenhuma política ambiental na tentativa de revitalizar o
Jequitinhonha foi realizada. Não bastasse isso, novamente interesses do grande
capital se interpõem entre o curso natural do rio, interferindo nas relações
socioculturais historicamente estabelecidas nesses quatro séculos de povoamento
da região.
Em 1997 foi
concedida licença prévia para a construção da Usina Hidrelétrica IRAPÉ
(UHE-IRAPÉ), inaugurada em 2006 pela CEMIG [6]. Concebida como uma promessa de
desenvolvimento para a região, esse empreendimento revelou-se um verdadeiro
engodo – aliás, trata-se apenas de mais uma das muitas promessas vãs que o Vale
do Jequitinhonha ouviu da boca dos políticos.
Com
potencial para gerar 360 Megawatts de energia, até o presente momento a UHE
Irapé em nada beneficiou as comunidades atingidas por ela. A energia produzida
no vale é utilizada no abastecimento de grandes indústrias instaladas nos
grandes centros. Além disso, várias comunidades ribeirinhas, cuja subsistência
está associada ao ciclo de enchentes do rio, sofreram impactos em sua economia,
conforme denuncia o Documentário “Os Atingidos de Irapé” (clique no
link para ver o Trailer [7]).
Depois da construção
da UHE a vazão do rio aumentou consideravelmente e a praia, tida como potencial
atrativo turístico e principal fonte natural de lazer da cidade desapareceu
paulatinamente, prejudicando o município econômica e socialmente. As poucas
porções de areia que restaram logo foram tomadas pela vegetação, tornando-se
impróprias para o lazer. Obviamente, há que se considerar que o aumento da
vazão constituiu um ganho para o rio, pois suas águas ganharam novo fôlego e o
Jequitinhonha novo alento. Entretanto, se a preocupação girasse em torno da
perenidade do rio Jequitinhonha deveriam ser empregados recursos na
revitalização de seus afluentes, a preservação de nascentes de córregos e
ribeirões. Como se sabe nada disso foi empreendido, indicando claramente que os
interesses e os beneficiados são outros e de outras regiões.
A despeito de todos
os impactos decorrentes da expropriação dos recursos naturais, as últimas
chuvas trouxeram grande volume de água ao rio e com elas a antiga praia de
Coronel Murta está de volta. O rio devolveu aquilo que os interesses
estrangeiros levaram. Em todos os cantos da antiga Itaporé [7] pode ser sentida
a euforia com a possibilidade de, depois de alguns anos, novamente acontecer um
Carnaval com praia. Se isso de fato ocorrer, a cidade receberá muitos turistas
que fomentaram a economia local, e a população terá ampliados os seus momentos
de lazer. Porém, convive com essa euforia o medo de as expectativas serem
frustradas, pois a vazão do rio se altera de acordo com as necessidades da UHE
e a qualquer momento o rio pode subir, alagando a praia novamente e, talvez,
levando-a definitvamente.
Ao longo deste
artigo tentei demonstrar, ainda que de forma implícita, que o rio Jequitinhonha
não é apenas um patrimônio ou um bem imaterial, mas uma categoria social
profundamente enraizada na produção da vida e reprodução social no vale do
Jequitinhonha. Inseridas neste gradiente teórico-prático as relações sociais
estabelecidas entre a população de coronel Murta e o rio Jequitinhonha, bem como
os impactos ambientais, carecem de ser amplamente discutidas a fim de
vislumbrar políticas de preservação, bem como, conferir poderes de gestão de
suas águas ao povo que delas depende.
Assim
sendo, gostaria de chamar atenção da população local e circunvizinha para a
necessidade de começarmos um amplo e profundo debate sobre a importância do Rio
Jequitinhonha, e do meio ambiente como um todo, para a reprodução social do
vale. Em coronel murta, apesar da euforia, até agora não se vê tentativas de
mobilizar a população nesse sentido. Apenas uma tímida tentativa de
encampar um protesto via Facebook é o que vi de mais relevante em termos de
discussão. Ainda no Facebook um grupo de
discussões viceja a possibilidade de realizar um quarto Festival Ecológico,
a fim de reviver aqueles da década de oitenta, porém, ainda sem colocar em
pauta as questões ambientais e sociais. Ora, não seria esse o momento certo
para as instituições competentes, prefeitura, vereadores, igrejas, católica e
protestantes, e a sociedade civil se mobilizarem no esforço de insuflar ânimo a
essas causas?
*Eric Renan Ramalho
é natural de Coronel Murta, graduando em Filosofia pela Universidade Federal de
Minas Gerais, Coordenador da Associação de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha
(ADVJ), Colaborador do movimento “A UFVJM É NOSSA!” e Administrador do Blog
Onhas.
** O Poema o ‘Rio
das minhas Manhãs’ foi gentilmente cedido pelo seu autor, o escritor natural de
Coronel Murta, Joaquim Celso Freire, e será publicado em uma antologia prevista
para maio de 2012.
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