Modo
de vida dos quilombolas está ameaçado e os cânticos das lavadeiras estão
desaparecendo.
Cicatriz no Vale do Jequitinhonha: garimpo clandestino contamina com dejetos
humanos manancial que é a marca de toda uma região |
Serro
– Doenças,
redução da oferta de água para consumo e queda da geração elétrica são o
resultado de anos de degradação das bacias hidrográficas e de uma rede de
nascentes desamparada. Mas, no município do Serro, no Vale do Jequitinhonha,
despejos de esgoto doméstico, comercial e detritos de matadouros nos mananciais
produzem uma devastação que extrapola o prejuízo ambiental: começa a degradar a
cultura de povos tradicionais, na bacia em que convivem um dos maiores bolsões
de pobreza do país e expressões culturais das mais ricas e genuínas. A
devastação do Jequitinhonha, cenário que inspira música, artesanato e formas de
cultivo, avança em direção à cabeceira, que começa a ser castigada pouco mais
de um quilômetro depois de brotar nos chapadões do cerrado mineiro, onde o rio
começa sua saga de mazelas ambientais e sociais até chegar à Bahia e desaguar
no mar, na altura do município de Belmonte.
O isolamento manteve praticamente intocada a
nascente do Rio Jequitinhonha, no Serro, a 320 quilômetros de
Belo Horizonte. Mas o córrego de águas translúcidas, que é imagem presente na
cultura local, desce sem a ação nociva do homem por apenas 1.300 metros . Já nessa
altura, o igarapé precisa transpor a canalização do aterro da rodovia BR-259,
onde recebe resíduos carreados da via, como combustível, óleo e cargas que
vazam pelas canaletas de drenagem. Passados mais 10 quilômetros , a
paisagem da nascente dá lugar ao fluxo intenso de esgoto do distrito de Pedro
Lessa, que é carregado pelo Córrego Acabassaco e mancha o manancial com mais
poluentes.
A derrubada das
matas que levavam até a área da nascente do Rio Jequitinhonha e o lançamento de
esgoto, lixo e animais mortos no Córrego Acabassaco afetaram o modo de vida de
quilombolas da região, como os descendentes de escravos fugidos ou alforriados do
povoado do Baú, a 35
quilômetros da sede do município do Serro. Homens e
mulheres da comunidade atravessavam as trilhas no mato pela nascente do
Jequitinhonha para caçar, coletar frutas e ir a outros povoados. Nas margens do
Acabassaco, se reuniam para lavar roupas, utensílios domésticos e obter água
para beber e cozinhar.
Nos últimos anos, o mau cheiro e a imundície têm descido as corredeiras do Córrego Acabassaco com cada vez mais volume, o que afastou os quilombolas de muitas de suas atividades. “A gente se juntava para lavar roupa no rio, cantando as canções que os antigos nos ensinaram. Mas agora, se a gente usa essa água fica com dor de barriga, adoece e pega mancha na pele”, reclama uma das líderes da comunidade do Baú, a lavradora e artesã Clemilde da Conceição Reis Vitor, de 56 anos. “A gente só cantava quando ia para a plantação e um ajudava o outro ou na beira do rio. E isso está acabando”, lamenta.
Nos últimos anos, o mau cheiro e a imundície têm descido as corredeiras do Córrego Acabassaco com cada vez mais volume, o que afastou os quilombolas de muitas de suas atividades. “A gente se juntava para lavar roupa no rio, cantando as canções que os antigos nos ensinaram. Mas agora, se a gente usa essa água fica com dor de barriga, adoece e pega mancha na pele”, reclama uma das líderes da comunidade do Baú, a lavradora e artesã Clemilde da Conceição Reis Vitor, de 56 anos. “A gente só cantava quando ia para a plantação e um ajudava o outro ou na beira do rio. E isso está acabando”, lamenta.
Moradora de remanescente de quilombo sobre o córrego que agora os habitantes evitam: vidas desviadas
|
Outro problema é o
êxodo impulsionado por problemas como esses. “Nossos jovens estão indo embora.
Não querem ficar onde não dá para plantar e onde a gente não tem tantas
opções”, lamenta a artesã Vera Vicentina da Conceição Paulino, de 50. Só na
casa dela seis filhos emigraram para São Paulo, atrás de mais oportunidades de
vida, abandonando suas raízes. “Antigamente, a gente passava por uma estrada de
terra para chegar à nascente do Rio Jequitinhonha. Hoje tem asfalto. As
fazendas e a cidade estão derrubando as matas que a gente conhecia. Os pássaros
que a gente via e depois bordava nas colchas e panos, os peixes que enfeitavam
nossas rendas, tudo está acabando aos poucos. Como é que uma pessoa que nunca
viu um pássaro vai bordar um?”, indaga Vera.
Quem pede aos quilombolas para ouvir um pouco de suas canções descobre que muitos não sabem mais as letras e os ritmos, apesar de alguns se mostrarem visivelmente tímidos, o que é típico daquele povo. Para essas ocasiões, mandam chamar o agricultor Luiz de Gonzaga Costa, de 59, um dos que ainda sabem os catopês, congados e canções tradicionais do Baú, porque os canta quando há festejos nas comunidades vizinhas ou reuniões no centro comunitário construído na comunidade.
Basta que Luiz entoe os primeiros versos, de frente para a pinguela que atravessa o Córrego Acabassaco, para atrair a atenção de quem está disperso: “Minha virgem do Rosário, hoje é o vosso dia/ que iremos festejar com prazer e alegria”. Outra canção, que mistura frases de origem africana a um manso sotaque caipira, faz alguns recordarem tempos passados, nas vozes de pais e avós: “No caminho do sertão/ Encontrei Mané João/ Com seu laço na garupa/ Tocando sua boiada/ Ê, kombiendi. A, kombiendá. Nangá-iangá, nocalungá/ Ê, kombiendi. A, kombiendá”. Se depender do agricultor, as canções continuarão a ser transmitidas, por serem muito importantes. “Esses catopês são nossos, aqui do povoado do Baú e do Ausente. Então, não podem acabar enquanto a gente estiver aqui”, disse, como quem teme que uma fonte muito importante seque de repente.
Veja a reportagem em vídeo
Por Mateus Parreiras (texto) e Leandro Couri (fotos), Estado de Minas
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